“Eu gosto do Porto. Não do porto erudito do Sampaio Bruno ou do burguês e literário do Ramalho. Gosto de um Porto cá muito meu, de que vou dizer já, e amo-o de um amor platónico, avivado de ano a ano à passagem para a minha terra natal, quando o Menino Jesus acena lá das urgueiras. Entro então nele a tiritar de frio, atravesso-o molhado de nevoeiro, arranjo quarto, e deito-me no aconchego dessa velha e casta paixão que nos une. No dia seguinte, pela manhã, levanto-me, compro um jornal, embarco, e a minha visita anual e discreta acabou. De vez em quando perco a cabeça, estrago os horários e vou ao Museu soares dos Reis ver o Pousão, passo pela igreja de S. Francisco, ou meto-me num eléctrico e dou a volta ao mundo, a descer à Foz pela Marginal e a subir pela Boavista. Mas é raro. O regular, o que está sempre no programa, é a coisa seca e peca que ficou dita. No comboio, dois ou três remoques da razão crítica lembram-me pelo caminho acima que talvez devesse exteriorizar doutra maneira o calor da minha amizade. Honestamente reconheço a pertinência da observação. Mas como sei exactamente a que funduras correspondem cá por dentro essas quase invisíveis marcas de afecto, prossigo a viagem, sereno, a pensar que se houvesse para lá da morte alguma janela donde se pudesse olhar a vida, uma das coisas de que eu gostava era de espreitar por ela um dia a ver se o futuro conservava intactas as virtudes essenciais que me fazem querer a esta terra do âmago do coração. A velha e livre cidade do Porto, onde há pouco tempo ainda só se podia entrar a tremer sobre pontes, com licença paga, por um túnel, ou revistado de cima a baixo – maneiras, como se vê, difíceis e reticentes -,e cujos forais não permitiam a fidalgo, nem poderoso, nem abade bento, o poisar nela mais que três dias, é muito velha no meu sangue e na minha consciência. Quanto em mim é instinto e compreensão, sabe de há muito que os valores autênticos da vida tem de ser sólidos como a Praça da Liberdade e altos como a Torre dos Clérigos….”
Conheço esta obra do Miguel Torga. Acho-a soberba. Como acho a sua obra em geral. Tão sensível e tão transmontano! É essa a ligação com Edith Piaf? Se for, entendi e acho a ideia óptima. Além do mais, ele gosta do Porto... Leiam a sua biografia e se encontrarem alguma semelhança com Ferreira de Castro não será mera casualidade. Como os admiro e me rendo à força soberana do querer. E assim sendo, já não me custa tanto adormecer sabendo-me português. Portugês do século XXI...
4 comentários:
:)
rien de rien
bj
a.
“Eu gosto do Porto. Não do porto erudito do Sampaio Bruno ou do burguês e literário do Ramalho. Gosto de um Porto cá muito meu, de que vou dizer já, e amo-o de um amor platónico, avivado de ano a ano à passagem para a minha terra natal, quando o Menino Jesus acena lá das urgueiras. Entro então nele a tiritar de frio, atravesso-o molhado de nevoeiro, arranjo quarto, e deito-me no aconchego dessa velha e casta paixão que nos une. No dia seguinte, pela manhã, levanto-me, compro um jornal, embarco, e a minha visita anual e discreta acabou. De vez em quando perco a cabeça, estrago os horários e vou ao Museu soares dos Reis ver o Pousão, passo pela igreja de S. Francisco, ou meto-me num eléctrico e dou a volta ao mundo, a descer à Foz pela Marginal e a subir pela Boavista. Mas é raro. O regular, o que está sempre no programa, é a coisa seca e peca que ficou dita. No comboio, dois ou três remoques da razão crítica lembram-me pelo caminho acima que talvez devesse exteriorizar doutra maneira o calor da minha amizade. Honestamente reconheço a pertinência da observação. Mas como sei exactamente a que funduras correspondem cá por dentro essas quase invisíveis marcas de afecto, prossigo a viagem, sereno, a pensar que se houvesse para lá da morte alguma janela donde se pudesse olhar a vida, uma das coisas de que eu gostava era de espreitar por ela um dia a ver se o futuro conservava intactas as virtudes essenciais que me fazem querer a esta terra do âmago do coração. A velha e livre cidade do Porto, onde há pouco tempo ainda só se podia entrar a tremer sobre pontes, com licença paga, por um túnel, ou revistado de cima a baixo – maneiras, como se vê, difíceis e reticentes -,e cujos forais não permitiam a fidalgo, nem poderoso, nem abade bento, o poisar nela mais que três dias, é muito velha no meu sangue e na minha consciência. Quanto em mim é instinto e compreensão, sabe de há muito que os valores autênticos da vida tem de ser sólidos como a Praça da Liberdade e altos como a Torre dos Clérigos….”
Miguel Torga, Portugal.- Porto –pag. 39-40
Conheço esta obra do Miguel Torga. Acho-a soberba. Como acho a sua obra em geral. Tão sensível e tão transmontano! É essa a ligação com Edith Piaf? Se for, entendi e acho a ideia óptima. Além do mais, ele gosta do Porto... Leiam a sua biografia e se encontrarem alguma semelhança com Ferreira de Castro não será mera casualidade. Como os admiro e me rendo à força soberana do querer. E assim sendo, já não me custa tanto adormecer sabendo-me português. Portugês do século XXI...
Enviar um comentário